quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Sobre a Ana, meu amor e minha pélvis

A primeira mulher que eu amei tinha uns 10 anos de idade.
Minha vizinha da praia. Tão linda, a Ana! Os olhos verdes... Tão mais menina do que eu. Ela usava saia e tinha uma boca de quem queria comer o mundo, logo cedo assim.
Eu espiava ela pelo muro, penteando os cabelos - ela penteava os cabelos! - se arrumando pra gente sair com a nossa gangue da rua pelo bairro, antes que anoitecesse de vez.
Eu colocava meu boné pra trás e amava ela tanto que doía.
Uma vez minha prima viu. Que desgraça, prima!
A gente no quartinho quente e quase sem luz, meu coração saindo pela boca, eu tinha que propor logo pra ela. Logo. Logo! Iam nos procurar!
E então eu convidei ela pra fugir de casa.
- A gente devia ser menino de rua!
Eu falei.
- Eu ia ser o menino e tu a menina! E a gente pode ficar junta pra sempre e nem tem que voltar pra casa de noite, Ana. Vamo vamo vamo puxa vida! Tem que ser rápido!
E daí acho que a gente fez alguma coisa de amor e desejo. Eu segurei a Ana no meio das minhas pernas, apertada bem forte, com todas as coisas verdes e novas daquela cidade. Comigo mesma. E o tempo passou. Tenho umas imagens cortadas. Acho que me forcei a esquecer depois porque parecia pecado e eu tinha medo do diabo. Tanto medo, eu tinha. E vergonha. E eu ficava suja e nauseada de pensar, mas a Ana tava bem ali, em mim. Molhada.
E então... minha prima começou a jogar umas pedrinhas na janela pelo lado de fora e fazer barulho e a gente saiu correndo.
E agente nunca fugiu de casa.
A Ana nunca me repsondeu.
E no verão seguinte a família dela não alugou mais a casa do lado da minha.
Anos depois a Ana foi estudar na mesma escola que eu e eu já nem amava mais ela e nunca toquei no assunto. Porque a gente tinha crescido e eu suava só de pensar.
A última lembrança que tenho da Ana é que um dia ela tava subindo as escadas da escola e começou a ficar meio azul, sem ar pra respirar. Eu botei a Ana sentada num degrau e lembrei porque um dia eu tinha amado ela. Eu gostava da curva que os ossos dela faziam sob a pele morena, perto do pescoço.
Eu não queria que a Ana morresse! Eu achava que crianças não deviam morrer e nem ficar assim meio roxas, meio geladas. A morte é feia, boy. Eu chorei rapidinho de pavor mas logo chegou o guardinha e ficou tudo bem. Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem.
A Ana não morreu naquele dia. Descobri que ela só tinha asma.
Depois a Ana saiu da escola e só espero que ela não tenha mesmo morrido.
Por que uma vez, na praia, eu amei tanto ela que doía...


terça-feira, 23 de novembro de 2010

O meio do fim

O palhaço volta pra casa de madrugada pelo canto da calçada, devagarinho, pra ninguém ouvir.
Com o estômago cheio de comprimidos e tristeza e as roupas desbotadas, a costura arrebentada - cedendo.
Ele está cedendo.
E faz uma prece sem crer, troca as palavras, engole a língua.
Sem peruca assim parece mortal. Como um passarinho velho e molhado. Encolhido e feio.
Desfigurado. Desgraçado.
Auto-irônia.
Preferia ter sido pintor. Mas não foi.
E já foi. Se fodeu, Seu Palhaço.
Acabou seu tempo.
Adeus.

Porque você não gritou quando ainda tinha voz, hein?
Agora morra em silêncio. E sozinho. E aqui.
Eu nunca te (me) amei mesmo.





sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Olha meu amor, eu estou voltando

Imagine o seguinte: parece segunda-feira mas é sexta.

Triturando os dentes todas as noites.
Me sinto bem, apesar dos olhos que fecham sozinhos e uma sensação de estar com a cabeça de baixo d'agua. O dia ficando vagaroso como um borrão, o som ficando estridente e opaco e então... eu morri. Ou dormi no ônibus.
E aqui vou eu de novo.
Repousando no mundo. Como um bebê envolto nas próprias tripas finas e quentes, que respiram fininho (as tripas). E molham. E dorme.
Barriga saindo pelo umbigo. Agonia boa.
Meu deus meu deus meu deus meu deus, anoitece logo. Me leva logo. Faz eu chegar. Faz ser bom. Faz ser isso. Faz sossegar. Por favor por favor eu não sei mais o que ser.
Queria parar de me mexer um pouquinho, sem sentir nojo e culpa. Nojo e culpa, sempre juntos. O nojo é verde e a culpa é preta.
Queria estar em uma daquelas casinhas na beira da água salgada. No lugar do carro, um barco. E existir pra sempre no laranja daquele lugar redondo, sem fim, que assisto da minha janela embaçada, depois de 13hs de viagem, toda vez que volto pra casa. Mas sei que não é isso. Eu morreria afogada em mim mesma tão logo cada noite chegasse.
Queria anoitecer uma noite aqui e outra lá. Mas sou apegada, meu deus. Faz alguma coisa comigo. Meu deus meu deus meus deus meu deus. Eu sei que você não tá aí. Seu bosta.
E mais, ó: última chance que te dou de você aparecer.
Mas já não me importo, eu me sinto bem. Eu me sinto bem. Eu me sinto. Eu sinto. Eu. Sinto. Muito.

Vou girar até cair. Um placebo manipulado por mim mesma.
E com as veias abertas, aqui vou eu de novo.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Sobre eu mesma que eu não sei e não estou

Eu costumava amar uma garota porque ela era mais velha, mais esperta, mais maliciosa.
Tinha tatuagens nos nós dos dedos e era sedutora.
Hoje eu também sou esperta, estou velha e maliciosa.
E a pia da minha cozinha está mofando. Minha imunidade está lá no pé e eu estou longe de casa e do mar.
Estou aprendendo a desenhar.
Fico desenhando mulheres peladas e suas bocetas. Grande irônia dos anos se desenrolam de um jeito esquisito e traiçoeiro e depois somem.
Eu sinto que estou ficando chata e ranzinza. Eu costumava ser radiante - me diziam.
Envelhe(burre)ci? Ou será só a falta de iodo?
Sei que aqui dentro ainda há euforia e loucura. Escondidos em algum lugar entre meu cansaço, algum músculo e meus ossos pontudos e podres.

É só que algumas noites parecem que não vão passar. Me sinto com 15 anos de novo.
Garotinha açoitada na escuridão.
Tudo está estático, imóvel. Lá fora. Aqui dentro. Tanto faz. O silêncio pesado engole a noite e me leva junto.
Fica essa tensão ridícula e o cheiro de morte. Morte morte morte feia e verde. Que não tem nada de bonito ou inspirador.

Um pouquinho de sangue ou vento pra chacoalhar as coisas, obrigada.



Her light is the night. I'm not blind, I belive in you. I see a green light...


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

En la lluvia me prometiste tu sangre

É como se fosse um bloco de concreto maciço, cinza, pesado. Uma bosta.
Pairando sobre minha cabeça de sono e segunda-feira e café que acabou.
Mas vou mastigá-lo. E cuspi-lo.
Mesmo que eu quebre todos os meus dentes e sangre - meu sangue preto e grosso que nem mingau.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sobre a Cidade e a Noite

A cidade é a grande casa. Nossa casa. De ninguém.
E a noite é o santuário do coração. Retorcida, escorrida, escarrada nas luzes que se apagam pra ela chegar.
Escondida, tão escura que até dói existir.
Gosto de quando a noite é azul e os prédios rasgam o céu com seu formato tão cheio, tão recortado.
A noite e seus vultos dormidos da madrugada que foi foi foi... e partiu.
A noite e seus filhos pulsantes que se esquivam como gatos espertos em suas curvas estreitas. E se embreagam no cheiro que vem dos bueiros. Do mijo e sangue e amores rasgados. Tão bonito e fétido. Aos loucos a procura de um útero quente e umido em forma de mulher (sem os dentes da frente): eis a noite.
Ruidoso e pesado o silêncio da noite na cidade...

Às minhas damas favoritas: a cidade e a noite e suas flores e fantasmas.





*texto de introdução para um trabalho de Linguagem Visual. Meu tema: A Cidade e a Noite.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Sobre mim mesma, a Madeleine e o sexo

Nada é mais certeiro e avassalador do que uma lembrança bem viva.

E aqui vou eu.

Meio-dia. Sempre esse silêncio estranho que faz meio-dia - mesmo em São Paulo - parece que o som grita abafado... Deve ser toda a comida no estômago.

O silêncio, a barriga pesada e esse calor de suar um pouquinho mesmo no inverno. Não existe nenhum cheiro/cor/música/coisa mais capaz de me transportar pra tempos remotos do que o combo som do meio-dia+barriga cheia+calorzinho.

Juro que se fecho o olho eu tô lá. É gelado na sombra e adoro levantar a blusa pra sentir o piso frio contra a barriga quando eu deitar no chão virada pra baixo - só o rosto no sol já tá bom.

O barulho do carro do pai passando nas pedrinhas -13hs, hora de voltar pra Depaschoal - e o cheiro do almoço que ficou e o detergente que começou a lavar a louça. Globo esporte na TV. A TV tá um pouco mais alto do que eu gostaria, mas tem comida demais na barriga pra eu levantar agora. Uma mosca pousa devagar no meu joelho.

A Paloma deita por perto e eu fico reparando que ela tem uma tetinha a menos - ou uma a mais, e que o tempo é justo e eu odeio que ele passe e já aparecem nela os cortes, as rugas, articulações inchadas e tortas. Penso que logo ela vai morrer e eu vou ficar triste porque nunca nenhum outro cachorro vai ter usado brinco e velejado os mares de Laguna com um pescador antes de ser meu.

Daí eu penso na morte e penso que um dia minha mãe vai morrer e choro rapidinho escondida e eu fico tentando pensar em outra coisa e desejando morrer primeiro pra nunca ter que ver ninguém morrer. E então eu fico bem com a idéia de morrer primeiro. Estico a cabeça só um pouco e enxergo a casa onde a Madeleine morava e desejo que ela volte pra gente poder brincar de Titanic na escada e de coisa proibida também, de baixo do tapete da sala dela.

Sinto vergonha por estar lembrando disso mas pulsa entre minhas pernas e é gostoso.

"Fecha essa perna guria! O Geraldo tá ali fora!!!"

Dou um pulo e o coração dispara, como se ela pudesse saber no que eu tava pensando. Vou me mexer pra fechar a perna mas perco o conforto da posição e aproveito pra levantar num impulso - fico cega por uns segundos, preciso aprender a levantar devagar - roubo umas bolachas da vaquinha do pote de vidro e lá vou eu...

terça-feira, 1 de junho de 2010

Sobre as vidas novas e as velhas e Iemanjá

Como é engraçado voltar a escrever depois de tanto tempo. As mãos ficam duras-defunto, parece que a gente desaprende das palavras, mas é tudo mentira.
Desaprender é mentira. Difícil é aprender. Depois, não se desaprende.
A gente só enraíza, endurece, se acomoda e mofa molhados e fedendo pra sempre amém. Tão verde e podre o mofo. Verde-bandeira (do Brasil) pendurada em tudo que é lugar balançando devagar e triste por causa da copa que é tudo mentira também de novo.
Gostoso era em 94 que tudo isso parecia tão importante e o sol franzindo o nariz, o peito cheio de amores breves, o mijo recém enterrado na areia, as unhas roídas doendo do sal e o cheiro da areia molhada de maresia.
"Olha o mar, mamacita! Iemanjá tá levando o nosso girassol de cabelo!!!"
Levou.
E hoje tão longe ela entra num ônibus e fica lá vindo vindo por 15 horas pra finalmente vir.
Porque eu cresci e tenho uma casa caixotão aqui do outro lado de nós.



Mala suerte já morreu. Enterrei na Avenida Santo Amaro.
Hoje eu trepo o prédio mais alto da Cidade do Sol e canto pra quem quiser acordar “ô boa noite pra quem é de boa noite...”




[difícil é desprender]